segunda-feira, 28 de janeiro de 2013




Edvard Munch, Self-portrait with Bottle of Wine, 1906
(clic na imagem)

Parecia-lhe que o fundamento da vida humana era um enorme medo de qualquer coisa, de algo de indeterminado. Estava deitado na areia branca, entre o azul do ar e da água, na língua de areia da ilha, entre as profundezas frias do mar e do céu. Como se estivesse deitado na neve. Se tivesse de ser arrastado por uma tempestade, era assim que seria. Clarisse saltava atrás das dunas com cardos, como uma criança. Ele não receava nada. Via a vida de cima para baixo. Aquela ilha elevara-se nos ares com ele. Compreendeu a sua história passada. Centenas de ordens humanas vieram e foram, dos deuses até aos alfinetes das jóias, e da psicologia ao gramofone, cada uma delas uma unidade obscura, cada uma a crença obscura de ser a última, ascendente, e cada uma, afundando-se ao cabo de alguns séculos ou milénios, feita de entulho e estaleiro: o que é isto senão uma escalada a partir do nada, de cada vez numa direcção diferente? Uma daquelas dunas que o vento forma, durante algum tempo é o seu próprio peso, até que o mesmo vento volta a desfazê-la? O que é todo o nosso fazer senão a angústia nervosa de sermos nada? A começar pelos divertimentos, que o não são, porque não passam de barulho, de um grasnar excitado para matar o tempo, porque uma obscura certeza nos avisa de que é ele que acabará por nos matar; até às invenções que se superam umas às outras, às montanhas absurdas de dinheiro que matam o espírito, quer sejamos esmagados quer suportados por elas, até às modas inquietas e impacientes do espírito, aos vestidos que mudam constantemente, às mortes, aos crimes, às guerras em que se descarrega uma profunda desconfiança em relação ao que existe e foi criado. O que é tudo isso senão a inquietação de um homem que escava numa cova até aos joelhos sem nunca dela conseguir sair, de um ser que nunca escapará completamente ao nada, que desespera e se dá múltiplas formas, mas num qualquer ponto secreto, que nem ele conhece, é matéria transitória e nada?
Robert Musil, O Homem sem Qualidades

segunda-feira, 14 de janeiro de 2013


Edvard Munch, The Dance of Life, 1899-1900
(clic na imagem)

- Se eu de facto pensei isso - respondeu -, agora prefiro formular as ideias de forma menos exigente. Pode parecer menos elegante, mas hoje chamaria às duas tonalidades do sentimento, e às duas possibilidades de viver sob o signo da paixão, simplesmente a apetitiva e, por contraste, a não-apetitiva. Em cada sentimento existe uma fome que se comporta como um animal selvagem; e existe uma não-fome, qualquer coisa que, livre da gula e da saciedade, amadurece de forma suave como um cacho de uvas ao sol do Outono. Só Deus sabe porquê, mas o facto é que me interessa muito chegar a entender-me contigo quanto a isto ...
- Temos então uma natureza «vegetal» e outra «animal» em cada alma? - perguntou Agathe, com um leve toque de gozo e troça.
- Quase diria que é assim - respondeu Ulrich. - Talvez o lado animal e o vegetal, entendidos como oposição fundamental dos apetites, constituam um achado para qualquer filósofo! Estou certo de que um dia aprofundarei o tema; mas por agora arrisco apenas ir tão longe como já fui. No fundo, o que disse significa apenas que é possível distinguir dois lados de um sentimento. Aquele a que chamo apetitivo impele à acção, ao movimento, ao gozo, e leva o sentimento a transformar-se em obra, ou também em ideia ou convicção - tudo formas de aliviar a tensão, mas também de alargar e reforçar o âmbito de acção. Ao mesmo tempo que isso acontece, o sentimento desgasta-se, esgota-se no êxito alcançado e chega ao fim; ou então encerra-se nele e "transforma a sua força viva em força armazenada que mais tarde eventualmente lhe pode voltar a dar aquela. Por isso, a actividade robusta do sentimento mundano e a sua caducidade, sobre a qual suspiraste tão agradavelmente, não se separam uma da outra. E não esqueçamos - digo-o sem preconceitos - que é a essa parte apetitiva do sentimento, à nossa natureza animal, como preferiste chamar-lhe, que o mundo deve todas as obras e toda a beleza, mas também toda a sua agitação e a desconfiança que dele temos e, em última análise, a persistência contínua e o absurdo do vazio que caracteriza o seu curso!
- Como eu te dou razão! - concordou Agathe. - Meu Deus, todo este trabalho do sentimento, a sua riqueza mundana, todo esse frenesi da vontade, da alegria, do fazer, da infidelidade por nada, a não ser porque ele nos impele a isso; e nisso entra tudo o que vivemos e esquecemos, pensamos e queremos desesperadamente, para voltar a esquecê-lo de novo. É tão belo como uma árvore cheia de maçãs de todas as cores, mas também amorfo e monótono como tudo o que ano após ano, e seguindo o mesmo curso, se vai arredondando e por fim cai!
- E o que é que tens contra isso? É assim tão mau? - Agora era Ulrich que fazia perguntas. Sentindo-se ultrapassado por tão viva concordância, negava-lhe a sua com um sorriso.
Mas a irmã não se fez esperar com a sua resposta decidida e bem disposta:
- Tenho menos contra isso do que se poderia esperar de ti depois das tuas últimas palavras! - respondeu ao desafio amável dele. - As minhas maçãs são inofensivas, comparadas com as tuas feras que passam da gula à saciedade e vice-versa! E não exiges tu com crueldade que se faça de tudo e todos, nem que seja de um suspiro mais fundo, um acontecimento significativo? Está-me a parecer que tu próprio queres ser uma fera do intelecto!
- É verdade, talvez eu tenha essa fraqueza de admirar no espírito dos seres humanos as virtudes de uma arma! Mas tu, minha querida e não menos admirada irmã - replicou Ulrich -, acabaste de rejeitar a ideia de que a vida só se justifica quando se fazem coisas significativas! E também a de que é nosso dever - continuou - formar sempre uma ideia e um princípio. Os teus gostos mais profundos são alegremente indiferentes a esta ideia: a sela do poder num cavalo de batalha nunca foi o teu forte! 
Robert Musil, O Homem sem Qualidades

quinta-feira, 10 de janeiro de 2013




Edvard Munch, Street Lafayette, 1891
(clic na imagem)

- Há pessoas, e eu conheci algumas - comentou Stumm -, que não perdem a mínima oportunidade de conhecer todos os génios de que se fala!
Ao que Ulrich respondeu:
- Esses são snobes e pedantes intelectuais. E o general:
- Mas Diotima também é assim. Ulrich:
- Não importa. Uma pessoa que acumula tudo o que encontra acaba por não ter forma própria, é como um saco.
- É verdade - reagiu o general, com um leve tom de censura -, tu já muitas vezes disseste que Diotima é snobe. E também falaste assim do Arnheim. Por isso é que eu achava que um snobe era alguém muito estimulante! Para ser franco, até me esforcei por ser um deles e não perder nada do que acontecia de importante. E agora custa-me um pouco ouvir-te dizer que nem um snobe oferece garantias de entender o génio. Já antes disseste que nem a juventude nem a velhice o garantem. E depois chegámos à conclusão de que os próprios génios não são capazes de o fazer, e muito menos os críticos. A conclusão lógica é que a genialidade, afinal, acaba por se revelar a qualquer um!
- Lá chegaremos, a seu tempo! - animou-o Ulrich, rindo. - A maior parte das pessoas acredita que os tempos fazem emergir naturalmente a grandeza.
- Pois é, é o que se ouve dizer. Mas explica-me isso, se puderes! - pediu Stumm com impaciência. - Compreendo que aos cinquenta anos se seja mais esperto do que aos vinte. Mas eu não sou mais esperto às oito da noite do que às oito da manhã. E não me parece que com mil novecentos e catorze anos sejamos mais espertos do que com mil oitocentos e catorze!
E assim se puseram a discutir ainda durante algum tempo o difícil capítulo da genialidade, o único que, segundo Ulrich, justifica a humanidade; mas é ao mesmo tempo o mais excitante e vergonhoso, porque nunca sabemos se temos diante de nós um génio ou uma das suas imitações sem alma. E como se distingue? Como passa de geração em geração? Poderia desenvolver-se mais se não fosse sistematicamente impedido de o fazer? Será assim tão desejável, como Stumm perguntava? Eram questões que, para o general, faziam parte da beleza da condição civil e da sua desgraçada desordem; já Ulrich as comparava à meteorologia, que não só é incapaz de dizer se amanhã fará bom tempo, como também se ontem esteve sol. É que o juízo sobre o que é genial muda com o espírito dos tempos - isto, se é que alguém está interessado nisso, coisa que não tem de ser vista como sinal por excelência da grandeza da alma e do espírito. 
Robert Musil, O Homem sem Qualidades



Edvard Munch, Young Woman on the Shore,1896
(clic na imagem)
Ulrich disse:
- Ouves os primeiros compassos de Bach ou Mozart, lês uma página de Goethe ou Corneille, e sabes que afloraste a genialidade!
- Em Mozart e Goethe talvez, porque já sei que é assim; mas não no caso de um desconhecido - defendeu-se o general.
- Achas que não te entusiasmarias mesmo na juventude? O entusiasmo da juventude está ele próprio próximo da genialidade!
- E porquê «ele próprio»? Mas, se queres uma resposta, digo-te: talvez uma diva da ópera me tivesse entusiasmado. E também admirei em tempos Alexandre o Grande, César e Napoleão. Já os escritores e compositores de todos os géneros, em si mesmos, me deixaram sempre indiferente.
Ulrich iniciou a retirada, apesar de sentir que atacara o assunto correctamente, mas do lado errado.
- O que eu quis dizer é que um jovem em pleno desenvolvimento intelectual adivinha o que é genial como uma ave migratória sabe que direcção tomar. Mas provavelmente trata-se de uma confusão, já que quando se é jovem se tem um acesso altamente limitado ao que é significativo. O jovem não tem o sentido do que é importante, mas apenas do que o excita. Nem sequer procura o genial, busca-se a si próprio e àquilo que se presta a conferir substância aos contornos dos seus preconceitos. O que o atrai - explicou - é o que se lhe assemelha, com toda a imprecisão que o acompanha. É mais ou menos aquilo que ele crê que pode ser, e significa para a sua educação o mesmo que o espelho em que se vê, com prazer, mas não apenas por vaidade. Por isso, nada mais natural do que esperar que as obras geniais produzam sobre ele este efeito. Em geral, são obras com marcas de contemporaneidade, e entre elas mais aquelas que tocam estados de espírito do que obras claramente formadas pelo intelecto; do mesmo modo, prefere aos espelhos fiéis aqueles que lhe tomam o rosto mais esguio ou os ombros mais largos ...
- Talvez seja assim - acedeu Stumm, pensativo. - Mas achas que o ser humano se toma mais sensato com o tempo?
- Sem dúvida que o homem maduro está mais capacitado e treinado para reconhecer melhor o que é significativo; mas os seus objectivos pessoais e as suas forças na idade madura também o obrigam a pôr de lado muita coisa. Não rejeita por incompreensão, mas recusa mais coisas.
- É isso, sim - exclamou Stumm, aliviado. - Não é tão limitado como um jovem, mas arrisco dizer que tem vistas mais curtas! E tem de ser assim. Quando nós convivemos com gente nova e imatura, como aqueles que a tua prima prefere, sabe Deus como temos de ter nervos e a sensatez de não entender metade do que eles dizem!
- Também podemos criticá-los.
- Más a tua prima diz que são todos génios! E como vamos nós provar o contrário?
 Robert Musil, O Homem sem Qualidades

domingo, 6 de janeiro de 2013




Edvard Munch, Friedrich Nietzsche, 1906
(clic na imagem)


Mesmo um homem de génio traz em si uma medida que lhe permitirá chegar à conclusão de que no mundo tudo anda para diante e para trás de uma forma absolutamente inexplicável - mas, onde está esse homem? Ulrich não sentia o menor desejo de se pôr a reflectir sobre isso, mas a questão atraía-o sem que ele soubesse bem porquê.
- É preciso distinguir o génio em geral do génio como superlativo individual - começou, sem encontrar ainda a expressão mais certa. - Antes, eu pensava por vezes que as únicas raças humanas importantes eram apenas a do génio e a do estúpido, e que não é fácil misturá-las. Mas os indivíduos da espécie genial, os geniais, não têm necessariamente de ser logo génios. Este, o génio admirado, nasce verdadeiramente na feira das vaidades; o seu brilho reflecte-se nos espelhos da estupidez que o rodeia; ele está sempre dependente de qualquer coisa que lhe confere mais algum mérito, como o dinheiro ou as condecorações. Por maiores que sejam os seus méritos, apresenta-se sempre como uma espécie de genialidade embalsamada ...
Agathe interrompeu-o, curiosa por saber mais do outro: - Pois, mas ... e a genialidade propriamente dita?
- Se retirares do boneco empalhado o que é palha, o resto devia ser isso - disse Ulrich. Mas pensou melhor e acrescentou, desconfiado: - Nunca saberei o que é genial, e também não sei quem irá dizer-me o que isso é!
Robert Musil, O Homem sem Qualidades 



Edvard Munch, Maridalen by Oslo, 1881
(clic na imagem)

Uma corrente silenciosa de pó de neve pairava no ar que a luz do sol enchia, vindo de um grupo de árvores que perdera a flor, e o sopro que a movia era tão leve que nem uma folha bulia. Não projectava sombra sobre o verde da relva, mas esta parecia escurecer a partir de dentro, como um olho. As árvores e os arbustos cheios de folhagem tenra e abundante que se alinhavam ao lado ou ao fundo davam a impressão de ser espectadores absortos que, surpreendidos e enfeitiçados nas suas vestes garridas, participavam deste cortejo fúnebre e desta celebração da natureza. Nesta imagem fundiam-se Primavera e Outono, linguagem e silêncio da natureza, vida e morte; e os olhos que o contemplavam diziam agora aos lábios para se calarem. Os corações pareciam ter parado, arrancados do peito para se juntarem ao cortejo silencioso que atravessava o ar. «E o coração foi-me arrancado do peito», disse um místico. Agathe abriu-se cautelosamente ao entusiasmo que já uma vez, neste mesmo jardim, quase a levara a pensar que ia chegar o Reino do Milénio, cuja imagem associava à de uma sociedade extática. Mas não esqueceu o que desde então aprendera: Neste reino temos de nos manter silenciosos, disse de si para si. Não podemos dar lugar a nenhuma espécie de desejo, nem sequer ao de fazer perguntas. Temos de nos libertar totalmente do entendimento racional com que de resto tratamos das nossas coisas. Temos de retirar ao Eu todas as ferramentas interiores. Parecia-lhe que dentro dela muros e pilares se desviavam para deixar entrar o mundo nos seus olhos, como fazem as lágrimas! Mas de repente deu por que estava apenas superficialmente dentro desse estado, e que os seus pensamentos há muito que tinham saído dele.
 Robert Musil, O Homem sem Qualidades
 

quarta-feira, 2 de janeiro de 2013




Edvard Munch, The Village Street, 1906
(clic na imagem)

«(...) não há dúvida de que a maior parte das manifestações da nossa vida assenta na insegurança intelectual. O que as determina é a crença, a suposição, a hipótese, a intuição, o desejo, a dúvida, as inclinações, as exigências, os preconceitos, a persuasão, a exemplificação, os pontos de vista pessoais e outros estados de semicerteza. E como nesta escala a opinião se situa mais ou menos a meio caminho entre a fundamentação e o arbítrio, uso o seu nome para designar o todo. Se aquilo que exprimimos por palavras, por mais grandiosas que sejam, quase nunca é mais do que uma opinião, aquilo que exprimimos sem palavras é sempre e apenas opinião.
«Digo então: no que de nós depende, a nossa realidade é, em grande parte, apenas uma opinião, apesar de lhe atribuirmos sabe Deus que importância. Podemos dar à nossa vida uma determinada expressão na pedra das casas, mas isso acontece sempre por causa de uma opinião. Podemos matar alguém ou sacrificar-nos, que agimos sempre com base numa suposição. Quase diria que todas as nossas paixões não passam de suposições, que nos enganamos muitas vezes com elas e que só nos entregamos a elas pelo desejo de nos afirmarmos! E também quando dizemos que fazemos alguma coisa de "livre" vontade isso pressupõe que agimos apenas porque uma opinião no-lo impõe.
(...)
«Pode parecer obstinação, mas só compreendo o que vejo quando observo o seguinte: esta contradição entre a paixão de si que enche o peito diante do esplendor de tudo o que criamos e a marca secreta do abandono e da renúncia a que somos votados, que se instala igualmente desde o primeiro minuto, corresponde perfeitamente à minha ideia de que tudo isso não passa de mera opinião. Vemo-nos, assim, numa situação muito particular, já que toda a opinião revela a mesma e dupla particularidade: enquanto é nova, provoca intolerância em relação a qualquer outra que se atravesse no seu caminho (quando as sombrinhas vermelhas estão na moda, as azuis tornam-se "impossíveis" - e algo de semelhante se passa também com as nossas convicções); por outro lado, cada opinião tem uma segunda particularidade: com o tempo, e de forma igualmente inexorável, acaba por ser abandonada quando deixa de ser nova. Eu próprio disse um dia que a realidade se anula a si mesma. Também se poderia dizer que quando alguém se manifesta apenas com opiniões, nunca se revela plenamente e em permanência; mas se nunca se consegue expressar integralmente, tentará fazê-lo das mais diversas maneiras, e assim terá a sua história. Ou seja, só por fraqueza terá uma história - isto, apesar de os historiadores, compreensivelmente, considerarem a capacidade de fazer história uma distinção especial!»
Robert Musil, O Homem sem Qualidades