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segunda-feira, 28 de janeiro de 2013
Parecia-lhe que o
fundamento da vida humana era um enorme medo de qualquer coisa, de
algo de indeterminado. Estava deitado na areia branca, entre o azul
do ar e da água, na língua de areia da ilha, entre as profundezas
frias do mar e do céu. Como se estivesse deitado na neve. Se tivesse
de ser arrastado por uma tempestade, era assim que seria. Clarisse
saltava atrás das dunas com cardos, como uma criança. Ele não
receava nada. Via a vida de cima para baixo. Aquela ilha elevara-se
nos ares com ele. Compreendeu a sua história passada. Centenas de
ordens humanas vieram e foram, dos deuses até aos alfinetes das
jóias, e da psicologia ao gramofone, cada uma delas uma unidade
obscura, cada uma a crença obscura de ser a última, ascendente, e
cada uma, afundando-se ao cabo de alguns séculos ou milénios, feita
de entulho e estaleiro: o que é isto senão uma escalada a partir do
nada, de cada vez numa direcção diferente? Uma daquelas dunas que o
vento forma, durante algum tempo é o seu próprio peso, até que o
mesmo vento volta a desfazê-la? O que é todo o nosso fazer senão a
angústia nervosa de sermos nada? A começar pelos divertimentos, que
o não são, porque não passam de barulho, de um grasnar excitado
para matar o tempo, porque uma obscura certeza nos avisa de que é
ele que acabará por nos matar; até às invenções que se superam
umas às outras, às montanhas absurdas de dinheiro que matam o
espírito, quer sejamos esmagados quer suportados por elas, até às
modas inquietas e impacientes do espírito, aos vestidos que mudam
constantemente, às mortes, aos crimes, às guerras em que se
descarrega uma profunda desconfiança em relação ao que existe e
foi criado. O que é tudo isso senão a inquietação de um homem que
escava numa cova até aos joelhos sem nunca dela conseguir sair, de
um ser que nunca escapará completamente ao nada, que desespera e se
dá múltiplas formas, mas num qualquer ponto secreto, que nem ele
conhece, é matéria transitória e nada?
Robert
Musil, O
Homem sem Qualidades
segunda-feira, 14 de janeiro de 2013
- Se eu de facto pensei
isso - respondeu -, agora prefiro formular as ideias de forma menos
exigente. Pode parecer menos elegante, mas hoje chamaria às duas
tonalidades do sentimento, e às duas possibilidades de viver sob o
signo da paixão, simplesmente a apetitiva e, por contraste, a
não-apetitiva. Em cada sentimento existe uma fome que se comporta
como um animal selvagem; e existe uma não-fome, qualquer coisa que,
livre da gula e da saciedade, amadurece de forma suave como um cacho
de uvas ao sol do Outono. Só Deus sabe porquê, mas o facto é que
me interessa muito chegar a entender-me contigo quanto a isto ...
- Temos então uma
natureza «vegetal» e outra «animal» em cada alma? - perguntou
Agathe, com um leve toque de gozo e troça.
- Quase diria que é assim
- respondeu Ulrich. - Talvez o lado animal e o vegetal, entendidos
como oposição fundamental dos apetites, constituam um achado para
qualquer filósofo! Estou certo de que um dia aprofundarei o tema;
mas por agora arrisco apenas ir tão longe como já fui. No fundo, o
que disse significa apenas que é possível distinguir dois lados de
um sentimento. Aquele a que chamo apetitivo impele à acção, ao
movimento, ao gozo, e leva o sentimento a transformar-se em obra, ou
também em ideia ou convicção - tudo formas de aliviar a tensão,
mas também de alargar e reforçar o âmbito de acção. Ao mesmo
tempo que isso acontece, o sentimento desgasta-se, esgota-se no êxito
alcançado e chega ao fim; ou então encerra-se nele e "transforma
a sua força viva em força armazenada que mais tarde eventualmente
lhe pode voltar a dar aquela. Por isso, a actividade robusta do
sentimento mundano e a sua caducidade, sobre a qual suspiraste tão
agradavelmente, não se separam uma da outra. E não esqueçamos -
digo-o sem preconceitos - que é a essa parte apetitiva do
sentimento, à nossa natureza animal, como preferiste chamar-lhe, que
o mundo deve todas as obras e toda a beleza, mas também toda a sua
agitação e a desconfiança que dele temos e, em última análise, a
persistência contínua e o absurdo do vazio que caracteriza o seu
curso!
- Como eu te dou razão! -
concordou Agathe. - Meu Deus, todo este trabalho do sentimento, a sua
riqueza mundana, todo esse frenesi da vontade, da alegria, do fazer,
da infidelidade por nada, a não ser porque ele nos impele a isso; e
nisso entra tudo o que vivemos e esquecemos, pensamos e queremos
desesperadamente, para voltar a esquecê-lo de novo. É tão belo
como uma árvore cheia de maçãs de todas as cores, mas também
amorfo e monótono como tudo o que ano após ano, e seguindo o mesmo
curso, se vai arredondando e por fim cai!
- E o que é que tens
contra isso? É assim tão mau? - Agora era Ulrich que fazia
perguntas. Sentindo-se ultrapassado por tão viva concordância,
negava-lhe a sua com um sorriso.
Mas a irmã não se fez
esperar com a sua resposta decidida e bem disposta:
- Tenho menos contra isso
do que se poderia esperar de ti depois das tuas últimas palavras! -
respondeu ao desafio amável dele. - As minhas maçãs são
inofensivas, comparadas com as tuas feras que passam da gula à
saciedade e vice-versa! E não exiges tu com crueldade que se faça
de tudo e todos, nem que seja de um suspiro mais fundo, um
acontecimento significativo? Está-me a parecer que tu próprio
queres ser uma fera do intelecto!
- É verdade, talvez eu
tenha essa fraqueza de admirar no espírito dos seres humanos as
virtudes de uma arma! Mas tu, minha querida e não menos admirada
irmã - replicou Ulrich -, acabaste de rejeitar a ideia de que a vida
só se justifica quando se fazem coisas significativas! E também a
de que é nosso dever - continuou - formar sempre uma ideia e um
princípio. Os teus gostos mais profundos são alegremente
indiferentes a esta ideia: a sela do poder num cavalo de batalha
nunca foi o teu forte!
Robert
Musil, O
Homem sem Qualidades
quinta-feira, 10 de janeiro de 2013
- Há pessoas, e eu
conheci algumas - comentou Stumm -, que não perdem a mínima
oportunidade de conhecer todos os génios de que se fala!
Ao que Ulrich respondeu:
- Esses são snobes e
pedantes intelectuais. E o general:
- Mas Diotima também é
assim. Ulrich:
- Não importa. Uma pessoa
que acumula tudo o que encontra acaba por não ter forma própria, é
como um saco.
- É verdade - reagiu o
general, com um leve tom de censura -, tu já muitas vezes disseste
que Diotima é snobe. E também falaste assim do Arnheim. Por isso é
que eu achava que um snobe era alguém muito estimulante! Para ser
franco, até me esforcei por ser um deles e não perder nada do que
acontecia de importante. E agora custa-me um pouco ouvir-te dizer que
nem um snobe oferece garantias de entender o génio. Já antes
disseste que nem a juventude nem a velhice o garantem. E depois
chegámos à conclusão de que os próprios génios não são capazes
de o fazer, e muito menos os críticos. A conclusão lógica é que a
genialidade, afinal, acaba por se revelar a qualquer um!
- Lá chegaremos, a seu
tempo! - animou-o Ulrich, rindo. - A maior parte das pessoas acredita
que os tempos fazem emergir naturalmente a grandeza.
- Pois é, é o que se
ouve dizer. Mas explica-me isso, se puderes! - pediu Stumm com
impaciência. - Compreendo que aos cinquenta anos se seja mais
esperto do que aos vinte. Mas eu não sou mais esperto às oito da
noite do que às oito da manhã. E não me parece que com mil
novecentos e catorze anos sejamos mais espertos do que com mil
oitocentos e catorze!
E assim se puseram a
discutir ainda durante algum tempo o difícil capítulo da
genialidade, o único que, segundo Ulrich, justifica a humanidade;
mas é ao mesmo tempo o mais excitante e vergonhoso, porque nunca
sabemos se temos diante de nós um génio ou uma das suas imitações
sem alma. E como se distingue? Como passa de geração em geração?
Poderia desenvolver-se mais se não fosse sistematicamente impedido
de o fazer? Será assim tão desejável, como Stumm perguntava? Eram
questões que, para o general, faziam parte da beleza da condição
civil e da sua desgraçada desordem; já Ulrich as comparava à
meteorologia, que não só é incapaz de dizer se amanhã fará bom
tempo, como também se ontem esteve sol. É que o juízo sobre o que
é genial muda com o espírito dos tempos - isto, se é que alguém
está interessado nisso, coisa que não tem de ser vista como sinal
por excelência da grandeza da alma e do espírito.
Robert
Musil, O
Homem sem Qualidades
Ulrich disse:
- Ouves os primeiros
compassos de Bach ou Mozart, lês uma página de Goethe ou Corneille,
e sabes que afloraste a genialidade!
- Em Mozart e Goethe
talvez, porque já sei que é assim; mas não no caso de um
desconhecido - defendeu-se o general.
- Achas que não te
entusiasmarias mesmo na juventude? O entusiasmo da juventude está
ele próprio próximo da genialidade!
- E porquê «ele
próprio»? Mas, se queres uma resposta, digo-te: talvez uma diva da
ópera me tivesse entusiasmado. E também admirei em tempos Alexandre
o Grande, César e Napoleão. Já os escritores e compositores de
todos os géneros, em si mesmos, me deixaram sempre indiferente.
Ulrich iniciou a retirada,
apesar de sentir que atacara o assunto correctamente, mas do lado
errado.
- O que eu quis dizer é
que um jovem em pleno desenvolvimento intelectual adivinha o que é
genial como uma ave migratória sabe que direcção tomar. Mas
provavelmente trata-se de uma confusão, já que quando se é jovem
se tem um acesso altamente limitado ao que é significativo. O jovem
não tem o sentido do que é importante, mas apenas do que o excita.
Nem sequer procura o genial, busca-se a si próprio e àquilo que se
presta a conferir substância aos contornos dos seus preconceitos. O
que o atrai - explicou - é o que se lhe assemelha, com toda a
imprecisão que o acompanha. É mais ou menos aquilo que ele crê que
pode ser, e significa para a sua educação o mesmo que o espelho em
que se vê, com prazer, mas não apenas por vaidade. Por isso, nada
mais natural do que esperar que as obras geniais produzam sobre ele
este efeito. Em geral, são obras com marcas de contemporaneidade, e
entre elas mais aquelas que tocam estados de espírito do que obras
claramente formadas pelo intelecto; do mesmo modo, prefere aos
espelhos fiéis aqueles que lhe tomam o rosto mais esguio ou os
ombros mais largos ...
- Talvez seja assim -
acedeu Stumm, pensativo. - Mas achas que o ser humano se toma mais
sensato com o tempo?
- Sem dúvida que o homem
maduro está mais capacitado e treinado para reconhecer melhor o que
é significativo; mas os seus objectivos pessoais e as suas forças
na idade madura também o obrigam a pôr de lado muita coisa. Não
rejeita por incompreensão, mas recusa mais coisas.
- É isso, sim - exclamou
Stumm, aliviado. - Não é tão limitado como um jovem, mas arrisco
dizer que tem vistas mais curtas! E tem de ser assim. Quando nós
convivemos com gente nova e imatura, como aqueles que a tua prima
prefere, sabe Deus como temos de ter nervos e a sensatez de não
entender metade do que eles dizem!
- Também podemos
criticá-los.
- Más a tua prima diz que
são todos génios! E como vamos nós provar o contrário?
Robert
Musil, O
Homem sem Qualidades
domingo, 6 de janeiro de 2013
Mesmo um homem de génio
traz em si uma medida que lhe permitirá chegar à conclusão de que
no mundo tudo anda para diante e para trás de uma forma
absolutamente inexplicável - mas, onde está esse homem? Ulrich não
sentia o menor desejo de se pôr a reflectir sobre isso, mas a
questão atraía-o sem que ele soubesse bem porquê.
- É preciso distinguir o
génio em geral do génio como superlativo individual - começou, sem
encontrar ainda a expressão mais certa. - Antes, eu pensava por
vezes que as únicas raças humanas importantes eram apenas a do
génio e a do estúpido, e que não é fácil misturá-las. Mas os
indivíduos da espécie genial, os geniais, não têm necessariamente
de ser logo génios. Este, o génio admirado, nasce verdadeiramente
na feira das vaidades; o seu brilho reflecte-se nos espelhos da
estupidez que o rodeia; ele está sempre dependente de qualquer coisa
que lhe confere mais algum mérito, como o dinheiro ou as
condecorações. Por maiores que sejam os seus méritos, apresenta-se
sempre como uma espécie de genialidade embalsamada ...
Agathe interrompeu-o,
curiosa por saber mais do outro: - Pois, mas ... e a genialidade
propriamente dita?
- Se retirares do boneco
empalhado o que é palha, o resto devia ser isso - disse Ulrich. Mas
pensou melhor e acrescentou, desconfiado: - Nunca saberei o que é
genial, e também não sei quem irá dizer-me o que isso é!
Robert
Musil, O
Homem sem Qualidades
Uma corrente silenciosa de
pó de neve pairava no ar que a luz do sol enchia, vindo de um grupo
de árvores que perdera a flor, e o sopro que a movia era tão leve
que nem uma folha bulia. Não projectava sombra sobre o verde da
relva, mas esta parecia escurecer a partir de dentro, como um olho.
As árvores e os arbustos cheios de folhagem tenra e abundante que se
alinhavam ao lado ou ao fundo davam a impressão de ser espectadores
absortos que, surpreendidos e enfeitiçados nas suas vestes garridas,
participavam deste cortejo fúnebre e desta celebração da natureza.
Nesta imagem fundiam-se Primavera e Outono, linguagem e silêncio da
natureza, vida e morte; e os olhos que o contemplavam diziam agora
aos lábios para se calarem. Os corações pareciam ter parado,
arrancados do peito para se juntarem ao cortejo silencioso que
atravessava o ar. «E o coração foi-me arrancado do peito», disse
um místico. Agathe abriu-se cautelosamente ao entusiasmo que já uma
vez, neste mesmo jardim, quase a levara a pensar que ia chegar o
Reino do Milénio, cuja imagem associava à de uma sociedade
extática. Mas não esqueceu o que desde então aprendera: Neste
reino temos de nos manter silenciosos, disse de si para si. Não
podemos dar lugar a nenhuma espécie de desejo, nem sequer ao de
fazer perguntas. Temos de nos libertar totalmente do entendimento
racional com que de resto tratamos das nossas coisas. Temos de
retirar ao Eu todas as ferramentas interiores. Parecia-lhe que dentro
dela muros e pilares se desviavam para deixar entrar o mundo nos seus
olhos, como fazem as lágrimas! Mas de repente deu por que estava
apenas superficialmente dentro desse estado, e que os seus
pensamentos há muito que tinham saído dele.
Robert Musil, O Homem sem
Qualidades
quarta-feira, 2 de janeiro de 2013
«(...) não
há dúvida de que a maior parte das manifestações da nossa vida
assenta na insegurança intelectual. O que as determina é a crença,
a suposição, a hipótese, a intuição, o desejo, a dúvida, as
inclinações, as exigências, os preconceitos, a persuasão, a
exemplificação, os pontos de vista pessoais e outros estados de
semicerteza. E como nesta escala a opinião se situa mais ou menos a
meio caminho entre a fundamentação e o arbítrio, uso o seu nome
para designar o todo. Se aquilo que exprimimos por palavras, por mais
grandiosas que sejam, quase nunca é mais do que uma opinião, aquilo
que exprimimos sem palavras é sempre e apenas opinião.
«Digo então: no que de
nós depende, a nossa realidade é, em grande parte, apenas uma
opinião, apesar de lhe atribuirmos sabe Deus que importância.
Podemos dar à
nossa vida uma determinada expressão na
pedra das casas, mas isso acontece sempre por causa de uma opinião.
Podemos matar alguém ou sacrificar-nos, que agimos sempre com base
numa suposição. Quase diria que todas as nossas paixões não
passam de suposições, que nos enganamos muitas vezes com elas e que
só nos entregamos a elas pelo desejo de nos afirmarmos! E também
quando dizemos que fazemos alguma coisa de "livre" vontade
isso pressupõe que agimos apenas porque uma opinião no-lo impõe.
(...)
«Pode parecer obstinação,
mas só compreendo o que vejo quando observo o seguinte: esta
contradição entre a paixão de si que enche o peito diante do
esplendor de tudo o que criamos e a marca secreta do abandono e da
renúncia a que somos votados, que se instala igualmente desde o
primeiro minuto, corresponde perfeitamente à minha ideia de que tudo
isso não passa de mera opinião. Vemo-nos, assim, numa situação
muito particular, já que toda a opinião revela a mesma e dupla
particularidade: enquanto é nova, provoca intolerância em relação
a qualquer outra que se atravesse no seu caminho (quando as
sombrinhas vermelhas estão na moda, as azuis tornam-se "impossíveis"
- e algo de semelhante se passa também com as nossas convicções);
por outro lado, cada opinião tem uma segunda particularidade: com o
tempo, e de forma igualmente inexorável, acaba por ser abandonada
quando deixa de ser nova. Eu próprio disse um dia que a realidade se
anula a si mesma. Também se poderia dizer que quando alguém se
manifesta apenas com opiniões, nunca se revela plenamente e em
permanência; mas se nunca se consegue expressar integralmente,
tentará fazê-lo das mais diversas maneiras, e assim terá a sua
história. Ou seja, só por fraqueza terá uma história - isto,
apesar de os historiadores, compreensivelmente, considerarem a
capacidade de fazer história uma distinção especial!»
Robert Musil, O Homem sem
Qualidades
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